domingo, 26 de agosto de 2012

Ser um médico paciente

Eu ainda tenho algum receio de falar sobre a área médica/saúde por aqui. Talvez por medo de falar alguma besteira, porque realmente existe aquela sensação de que sabemos muito pouco sobre qualquer coisa. Ou talvez porque ao falar da área médica/saúde eu mude um pouco a cara do blog, no qual tenho seguido a linha "como estou nestes dias". Sempre haverão receios e é necessário que haja uma primeira vez. Meio que inauguro os assuntos médicos por aqui, tudo bem?

Então. Ontem, sábado, 25 de agosto de 2012, saí de casa bem cedinho para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde estudo. Fui fazer uns exames que estavam pedidos há um tempo pelo serviço de Saúde dos Alunos e aproveitei para fazer uma anamnese. Anamnese é uma entrevista feita pelo profissional de saúde com seu paciente a fim de iniciar o processo diagnóstico. Para quem está iniciando, como eu, leva mais de uma hora. Para quem é lento e gosta de conversar, como eu, leva até duas (rs). A Santa Casa, que é enorme (um foto dela ao final desta postagem), é dividida em departamentos e ontem eu fui ao Departamento de Medicina (DM), onde algumas áreas clínicas atendem, para fazer a dita anamnese.

Lá no DM andei pelos corredores observando as enfermarias. Não gosto muito de escolher o paciente "para treinar" pelo seu prontuário (aquele documento onde são anotadas todas as informações e ações relacionadas ao paciente) e sim pela receptividade dele quando apareço de surpresa no seu quarto de internação. A receptividade da D. Lindinha (*) foi grande e tive o prazer de conhecer uma alma muito iluminada capaz de transformar o meu dia. Tudo o que eu tinha a oferecer a ela eram perguntas e mais perguntas sobre sua vida e seu organismo, suas dores e suas queixas... e por eu ter essa alma de poeta palhaço, pergunto também sobre seus dilemas mais internos e tento fazer alguma graça. E, por outro lado, ela tinha muito mais a me oferecer - tinha uma vida toda de moléstias, de dores, de pesares e de curas, de superações, de determinações e de esperança. D. Lindinha, que acabava de sofrer sua internação por um médico gastroenterologista, não tinha acompanhantes (não sei porquê) mas tinha 76 anos de muita história bonita para contar. E contou um pouquinho, com prazer.

D. Lindinha nasceu no Pernambuco, na roça (identifiquei-me logo) em 1936 e casou-se aos 14 anos. Não teve um casamento feliz do ponto de vista conjugal, mas teve filhos e ficou claro que ela não deixou de lutar por eles a vida toda. Talvez lute até hoje, com as forças que ainda lhe sobram. São forças divinas, como ela gosta de falar. D. Lindinha tem problemas no estômago e há alguns anos perdeu o prazer de se alimentar (imagino como ela deva saber fazer coisas gostosas - lembro-me das minhas vovós, tias-avós e tias neste momento) e controla muito bem o que come para não sofrer. Ela é paciente com seu estado de saúde. Aceita as imposições do tempo e do mundo e não perde a esperança.

D. Lindinha tem uma confiança muito grande nas pessoas e imagino quantas ela já amparou por seu caminho. D. Lindinha teve muita confiança em mim, desde o momento em que me apresentei um pouco acanhado até o momento em que ensaiei um exame físico geral nela. D. Lindinha teve toda a paciência do mundo comigo. Tratamos de vários assuntos fisiológicos, de todas as partes do corpo, de todos os medicamentos, de boa parte de sua família e de suas histórias. Eu, que assumo aqui que em quase toda conversa tenho uma necessidade muito grande de me expor, talvez para superar meu interlocutor, me senti completamente à vontade em apenas ouvir e no máximo fazer perguntas. Percebi que a relação de um médico (talvez eu receba essa denominação daqui alguns anos) com seu paciente é totalmente diferente - é uma dedicação a ele, incondicional! Entendi que ser paciente com o seu paciente é a receita ideal. Ser paciente a ponto de ter a oportunidade de chegar no mais íntimo do sofrimento do seu paciente. Isto é o que eu destacaria como meu ideal de trabalho: conseguir ser o mais paciente possível!

Demorei as tais duas horas na entrevista. "Passou voando", como dizem. Saí do DM e fui almoçar no bandejão da mesma Santa Casa. Refleti um pouco sobre a minha manhã - ensaiei ser paciente (exames de sangue e radiografias) e ser um médico paciente. E pensei que quero ser assim por toda a minha vida e minha futura profissão. Voltarei a ver D. Lindinha durante essa semana, mas torço muito para que ela receba alta em breve. Aprendi muito mais Medicina neste final de semana do que nas últimas três semanas agitadas de provas e seminários da faculdade. E que o aprendizado seja cada vez mais confortável e mais prazeroso. Podemos lutar por isso!

Não consigo concluir nada. Esta história não tem fim, como o aprendizado e a paciência não devem ter.

Uma excelente semana para todos vocês!

Polin Maia

(*) D. Lindinha só tem esse nome porque eu exclusivamente a achei a coisa mais lindinha do mundo. Seu nome estava no prontuário, mas eu não gosto de prontuários. Eles revelam o paciente e nunca a paciência...

3 comentários:

  1. U-a-u Paulo!
    Acho que é a primeira pequena grande mensagem que posso deixar: UAU... Uma interjeição de apenas 3 letras que está expressando toda minha emoção, arrepio e gosto em ler teu texto...
    Até pensei em não comentar nada, mas pela tua exposição, e o modo como a fez, achei interessante eu compartilhar um pouco de mim..
    Para uma primeira postagem no assunto, vc está mais do que de Parabéns. Por todas as palavras, consegue-se perceber teu amor pela medicina, essa "profissão" vasta que eu, você, e muitos outros descobrem a cada dia, e que é fonte de carinho e brigas constantes, num processo, creio eu, de amadurecimento.
    Confesso que me identifiquei muito por muitas passagens, quando diz o quanto devemos ser pacientes para nos tornarmos verdadeiros médicos. Acho que essa é a grande questão que venho apre(e)ndendo no decorrer desses meus poucos anos na med. E costumo escrever sobre isso, assim como você.
    Quando conta tua experiência, em pleno sábado na Faculdade, percebo como é grande teu empenho, e me sinto cobrada (e até culpada) a fazê-lo também! Daí percebe-se que se pode, e muito, apreender com os que "vêm depois", os calouros, e não apenas com os "veteranos"... Obrigada por compartilhar comigo esta história.
    Muita sorte a ti, a nós, na apreendizagem de um pouco mais de como sermos médicos, médicos doutores, e ainda mais, médicos pacientes.
    Areguá,
    Giuliana

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  2. Adorei, Paulo.
    Texto lindo. Parabéns! =]
    Saudades,
    Bruna.
    P.S.: para refletir, acho que vale a pena... http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/aos-estudantes-de-medicina/

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  3. Lindo demais.
    Maravilhoso seu blog.
    O mundo precisa de pessoas como vc mesmo, com essa visão e ação pura.
    Estamos juntos.
    Obrigado por passar o link, parabéns pelo blog.
    abraço
    Samuel

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Polin Maia